Estava conversando com uma amiga, dia
desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, que eu não conhecia.
Descreveu-a como sendo boa gente, esforçada, ótimo caráter. “Só tem um
probleminha: não é habitada.” Rimos. É uma expressão coloquial na França – habité
- mas nunca tinha escutado por estas
paragens e com este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga que, de forma
parecida, também costuma dizer “aquela ali tem gente em casa” quando se refere
a pessoas que fazem diferença.
Uma pessoa pode ser altamente
confiável, gentil, carinhosa, simpática, mas se não é habitada, rapidinho
coloca os outros pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não
necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de ser má referência.
Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que
faltava demônio em Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato, é um país
de contos de fada onde tudo funciona, onde todos são belos, onde a vida parece
uma pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo.
Retornando ao assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas por si mesmas, em
diversas versões. Os habitados estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas,
mas não são menos felizes por causa disso.
Não transformam suas “inadequações” em
doença, mas em força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se
amedrontam com transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar
o diálogo. São pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script,
sem nenhuma disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário,
encantam pela verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão
uma relação mais do que cordial.
Então são as criaturas mais incríveis
do universo? Não necessariamente. Entre os habitados há de tudo, gente
fenomenal e também assassinos, pervertidos e demais malucos que não merecem
abrandamento de pena pelo fato de serem, em certos aspectos, bastante
interessantes. Interessam, mas assustam. Interessam, mas causam dano. Eu não
gostaria de repartir a mesa de um restaurante com Hannibal Lecter, “The
Cannibal”, ainda que eu não tenha dúvida de que o personagem imortalizado por
Anthony Hopkins renderia um papo mais estimulante do que uma conversa com, sei
lá, Britney Spears, que só tem gente em casa porque está grávida.
Zzzzzzzzzzzzz.
Que tenhamos a sorte de esbarrar com
habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos
fascinar e nos manter acordados uma madrugada inteira. Ou a vida inteira, o que
é melhor ainda.
Martha Medeiros
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