quarta-feira, 8 de julho de 2020

Carta: De andré para tia Lucia



Tia Lucia,
A senhora não é minha tia, mas minha mãe me educou para chamar todas as amigas dela  e todas as mães dos meus amigos de tia, e nem sei se vocês, mulheres, gostam disso.
Minha tia pra vale, irmã do meu pai, eu chamo de Maria Eugênia porque ela me proibiu de chamar de tia Maria Eugênia, disse que envelhecia, sei lá.
Imagino que a senhora não esteja interessada em nada disso. É que não sei como tocar no assunto, e falar pessoalmente não vai dar, não depois de ter visto a senhora naquele estado, no enterro.
Tia Lúcia, eu quis abraçar a senhora e não consegui, na verdade não consegui nem chegar perto da capela, nem do tio Nestor, nem do Álvaro, de ninguém. Saí de lá achando que nem deveria ter ido.
Eu não imagino a sua dor, sei que é imensa, impossível imaginar. Mas posso adivinhar suas perguntas, as dúvidas, as desconfianças. Era eu que tava dirigindo, eu e ele no banco da frente, eu e o Lucas. É natural que a senhora e o tio Nestor achem que eu tenha alguma explicação para o que aconteceu, que eu possa dizer alguma coisa que alivie o desespero de vocês, mas eu não tenho nada para dizer, foi tudo muito rápido e muito sem sentido.
Se eu ao menos pudesse voltar no tempo. Coisa idiota de se dizer... Todos nós, hoje, gostaríamos de estar na sexta-feira, gostaríamos de ter ido dormir cedo naquele dia. Eu preferia nem ter nascido, sério.
Poderia ter sido qualquer um, o Fábio, o Roger, O Correa, mas fui eu que dei carona pro Lucas, ele me pediu, eu estava saindo da festa meio pê da vida com uma menina., nem vou contar o motivo, não importa, e o Lucas me perguntou se eu iria para os lados dele, eu nem ia, mas disse entra aí. A senhora não vai acreditar, mas eu não tinha bebido muito, dei uns goles numa cerveja quem nem era minha, quente, tudo estava quente naquela noite, fico me perguntando por que eu saí, por que não fiquei vendo um filme, por que tinha que ser comigo. O Lucas não tinha bebido muito também. Estava de bobeira, aquele jeito dele, de estar nos lugares sem saber por quê. Meio como todo mundo. A gente veio conversando umas besteiras. Nos fundos da casa, dessa casa onde tava rolando a festa, havia uma goiabeira. Nem sabia que isso ainda existia, a gente mudou de século agora, e uma goiabeira, sei lá.
A gente falava disso, ele havia acabado de comer uma goiaba pela primeira vez na vida, muito engraçado o Lucas, mas eu estava tão confuso por causa da menina, nem entendi muito aquele papo de goiaba, até que achei que o Lucas havia fumado um, mas não, tia, ele estava de cara, todo mundo confirmou. Não era tarde, nem duas ainda.
Eu pensando na garota, ele falando aquelas bobagens sobre comer goiaba, o som estava ligado, a gente ria sem motivo, eu sem motivo algum. Mas não estava bêbado nem com sono, foi casualidade mesmo, um bicho, um cachorro, cruzou na frente do farol, eu me assustei, travei, o carro derrapou, e tinha aquela árvore ali, bem ali, do lado dele, bem do lado do carro, bem perto, eu não tive culpa, ninguém teve, a rua estava vazia, tocava uma música, a gente viu o bicho, eu tentei desviar, o carro não voltou tão rápido, ficou na árvore, uma batida que nem era muita coisa, mas dizem que ele estava sem cinto, eu não vi, nem reparei.
Tia Lúcia, minha mãe não para de chorar, ela está chorando pela senhora, por mim, pelo Lucas. Eu ainda não chorei porque nem sei direito o que aconteceu, eu fiquei tão tonto, fui tirado do carro por uns camaradas e disse que não havia sido nada, que exagero, não foi nada! E aquela gente juntando, eu com um cortezinho assim, porcaria, nem precisava ambulância, essa gente delira. Juro, nem viu o Lucas, achei que o cara tinha saído caminhando, eu naquela hora pensava no carro, achei que tinha sido o único prejuízo, só depois eu soube, só depois, e aí não entendi mais nada.
Eu ainda não tinha conseguido assimilar até que vi a senhora no cemitério, e juro, a senhora me olhou muito rapidamente, nem sei se durou um segundo, meio segundo, um décimo de segundo, esses frames de Fórmula 1, foi rápido mesmo, mas aquele centésimo de olhar me sepultou junto com o Lucas, e eu me senti morto, eu não podia estar ali vivo, não pra senhora. 
Desde que eu comecei esta carta eu quero dizer que não tive culpa, mas a senhora vai acreditar? Um dia, vai? Porque eu fico imaginando se eu tivesse um filho, nem sei como é, e nem sei se vou ter um dia, mas se eu tivesse e acontecesse algo assim eu acho que iria pirar. Escolheria alguém pra odiar o resto da vida. A mãe disse que a senhora vai superar, mas vocês duas nem se conhecem, como é que ela pode saber? Ela disse também que ódio é pra gente sem religião. Eu não sei dessas coisas.
O Lucas era meu chapa, a gente se dava legal, todo mundo gostava do cara. Vai fazer falta pra turma, mas não sou tão criança, sei que pra senhora e pro  tio Nestor e pro Álvaro a coisa é mais sombria. O Álvaro. Eles são tão parecidos. O Lucas e o Álvaro. A senhora tem o Álvaro. Eu não vou me aproximar desse moleque, prometo.
Tia Lúcia, não sei se um dia a gente vai voltar a conversar, eu até pensei em ir ao apartamento de vocês mas acho que nunca mais. Eu não tive culpa, tia. Podia ser qualquer outro na direção. Podia um detonado, um maluco ter entregue o Lucas inteirinho em casa, mas foi comigo, que sou um cara que nunca se meteu em encrenca. A vida prepara umas ciladas. Eu preferia nem ter saído de casa aquele dia, e preferia que ele não tivesse pedido carona, e que aquele cachorro não tivesse cruzado a frente do carro, e que eu não estivesse tão distraído, nem nada disso tivesse acontecido. Queria acordar deste pesadelo, queria que hoje fosse um dia como os outros. Tia, foi mal. Me perdoe.
André

***
P.S. Não sei se ainda está em cartaz esta peça de teatro com o ator Emílio Orciollo Netto onde ele narra esta carta.

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