sexta-feira, 31 de julho de 2020

Carta: De Vitor para o irmão



Mano,
Isso aqui é uma roleta russa. Cleck, cleck, cleck. A bala ainda não entrou na minha cabeça. Todo dia acho que vou morrer. Todo dia acho que ainda não nasci. Me deixaram te escrever de novo. Não sei se vão colocar no correio. Tudo doido. Todos. Não tem um que escape.
Hoje foi massa com almôndega. Ontem adivinha. Massa com almôndega. E anteontem, massa com coxinha de galinha. Amanhã, massa com coxinha de galinha de novo. Almôndega e coxinha, às vezes dois dias coxinha, dois dias almôndega, eles nem revezam. Eu fico olhando pra cara do bando no refeitório. Ninguém sabe por que está comendo. Eles mandam, a gente come. Não faz a menor diferença. A mãe cozinhava bem? Não lembro da mãe. Que rosto, que cara tinha. O nome. A gente teve uma?  Uma mulher veio me visitar outro dia  Faz um mês. Ou um ano. Grande porcaria. Não sei quem era. Se irmã, namorada, ex-professora. Tinha um bundão. Não tinha cara de mãe. Mãe é sempre mais velha que a gente. Essa era mais ou menos. Era sua mulher? Você casou? Quando eu sair daqui vou ter uma mulher. Vou ter duas. Vou comprar umas quatro.
Sonhei que tinha um carro. Eu lembro como é dirigir. Primeira, segunda, terceira. A gente pegou o carro do velho sem licença, quantos anos eu tinha? Você era um cagão. Não aconteceu nada. Na-da. Mas você chorava feito uma menina. Eu tinha um pouco de ódio de você. Nunca gostei de medo. Medo não existe. Medo é uma desculpa. Cleck. Cleck. Roleta russa. Não faz diferença. Morrer, viver, não faz nenhuma.
Me escondo no quarto para não saber se é dia ou noite. Assim passa mais rápido. Mas não me respeitam. Me puxam pela gola do uniforme e me arrastam pro pátio, vem pegar sol. Pegar sol, que ideia. Ninguém alcança o sol. Rotina: vou, volto, sento, levanto, sozinho, cercado de loucos. Pegar a chuva, dá.  Mas aí eles não deixam. Quero pegar a chuva com a mão, eles não deixam. Vai pegar resfriado! Resfriado, que não dá pra pegar, eles dizem que se pega. Me tira daqui, vai.
Tem um cara me olhando. O vigia. Pra ver se eu não vou fazer nada de errado com esta caneta. Ele deve estar pensando em sacanagem. Mas não vou enfiar a caneta no rabo. Eu poderia furar meus olhos: pum, pum, uma estocada em cada um, só pra ver este babaca mijar nas calças. Tudo fede aqui dentro.
Eu não preciso de olhos. Ele precisa. Tenho um plano. Me aproximar fingindo que quero ajuda com uma palavra: mau se escreve com a letra u ou com l no fim? e pum, pum, duas estocadas nos olhos dele. Eu iria preso? Do hospício pro presídio, muda nada. Você me jogou aqui dentro. Atrapalho o andamento. Causo desordem, vejo coisas. A cabeça veio com defeito. Não bate. Bate, cabeça, bate.
Dei um susto no homenzinho. Bati minha cabeça, na parede. Uma vez só. Ele arregalou os olhos. Arregalou bem arregalado. Ficaria mais fácil assim: pum, pum. Idiota. Ameaçou tirar a carta de mim, fingi chorar, ele devolveu. Eles adoram quando a gente se faz de retardado. Eu sei que eles não vão entregar pra você. Eles entregaram as outras? Você não responde. Eu nem sei se você ainda existe. Queria saber há quanto tempo estou mofando aqui. Não tem espelho. Se quebrarem, viram cacos. Arma. Me enxergo no reflexo dos vidros das janelas e me acho igual. Igualzinho. Igual a quem, não sei. A Rosana me achava bonito. A Rosana. Você conheceu. Você casou com ela? Foi a Rosana que esteve aqui? Me olhou com uma cara de pena. Tão feia.
Se ainda fosse um hospício decente. Anárquico. Mas é como qualquer hospital, os doentes arrastando os pés pelo assoalho frio. O banho é frio. O eletrochoque é quente. O olhar de uns é frio, de outros é quente. As mãos gelam à noite. O silêncio enlouquece. O silêncio. Por isso uns gritam. Pra não enlouquecer mais ainda. Eu não grito. Eu converso com as traças. Com as baratas. Com os ratos. Limonada um dia, água no outro, limonada um dia, água no outro. Eu prefiro água, que é um troço mais sincero. Eu consigo enxergar o fundo do copo. Nunca é limpo. Nada é limpo. Eu também não. O banho é frio. Você casou com ela? Não sei se fui eu que vi vocês primeiro, ou vocês que me viram. Aquilo arranhou meus olhos. Me açoitou. Eu queria sair de mim, não conseguia. Sofrer alucina. Doía feito carne arrancada do corpo. Nunca mais vou sentir coisa igual. Amor é dor. Amor é dor. Amor é dor. E você foi um filho da puta. Gostar de alguém que vai te deixar. Todo cretino faz isso. Vou ter duas. Vou ter cinquenta. Vou deixar uma por dia. Me tira daqui. Não vou procurar vocês. Não sei em que sarjeta, em que buraco foram se esconder de mim. Por que não veio com ela? Vem. Vem ver meus dedos cheios de sangue. Sangue coagulado, preto, duro. Eu devoro o entorno das unhas. Arranco a pele. Arde. É a única fome que tenho.
Pum, pum. Em cada um, arregalado. Com a ponta da caneta. Chega mais perto. Coloca os olhos bem perto deste papel. Brincadeirinha. Daqui eu não posso. Daqui eu não posso nada.
Teu irmão,
Vitor.

***

P.S. Não sei se ainda está em cartaz esta peça de teatro com o ator Emílio Orciollo Netto onde ele narra esta carta.

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