sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Carta: De Dinorá para Graça



Graça,
Eu vou enlouquecer, você tem que vir aqui me dar uma força, não estou segurando a barra sozinha, por favor minha irmã, dê um jeito aí no seu trabalho e venha passar uns dias aqui, já que buscar a mãe para levar com você não há hipótese.
Que álibi maravilhoso o seu, hein? É solteira, trabalha o dia inteiro e não tem grana, como cuidar de uma idosa que necessita de atenção a todo instante? Sobra para irmã casada, a que tem empregada, filhos, bom salário e que nunca mais botou o nariz pra fora de casa, a trouxa aqui, que sempre teve a cabeça no lugar. Mas Graça, minha cabeça está em risco, e minha empregada também, a Lorena não aguenta mais cuidar da mãe, reclama e ameaça ir embora, e as crianças não param em casa por causa dela, para não terem que tropeçar com ela na sala, a mãe não sai nunca, está sempre sentada em algum lugar se queixando de dores e de desatenção - de desatenção! Nós que praticamente paramos de viver para atender suas necessidades, suas crises.
Eu não achei que iria ser tão pesado. Graça, achei mesmo que a gente daria conta de tudo, mas entrego os pontos, hoje tenho que desabafar, a vida da gente está uma merda, a minha e a do Flávio, ele anda impaciente, irritadiço, agora botou na cabeça que a gente tem que viajar, mas o que eu faço com a mãe? Ela não quer uma enfermeira, é teimosa, diz que não está doente, está apenas velha, e tem razão, mas o que faço com ela, se eu deixá-la nas mãos da Lorena e das crianças eles nunca me perdoarão, as crianças estão naquela idade, você sabe, praticamente dois adultos, não têm ouvidos nem pra mim, muito menos para a avó, que tal você pedir uma licença no emprego e vir, Graça? Venha fazer companhia para ela para que eu posso dar uma viajada com o Flávio e tentar salvar o nosso casamento , porque do jeito que está, nossa relação vai acabar indo pro espaço.
A mãe está mais ranzinza do que nunca, fala sozinha, fala com os objetos, reclama da comida, diz que a Lorena é relaxada, que não limpa direito a cozinha, e implica com os amigos das crianças, outro dia não transferiu uma ligação de um colega da Fernanda, desligou na cara dele, e a Fernanda tem chiliques, é claro, grita pelo corredor, diz que não aguenta mais dividir o banheiro com a avó, que menina de 16 anos gostaria? Um inferno, é isso que se tornou este apartamento, um inferno. No começo a mãe era mais quieta, ficava no quarto dela vendo tevê, mas uns tempos pra cá anda agitada, se irrita por não ter nada pra fazer, e ao mesmo tempo sente pânico de sair de casa, não quer ir a lugar nenhum, ver nenhuma amiga, está ficando até meio porca, Deus me livre, diz que tem medo de cair durante o banho, e olha que eu coloquei corrimão no box e ao lado do vaso, tudo direitinho, mas ela não faz a higiene dela, outro dia eu tive que escovar os dentes da mãe como se ela tivesse 3 anos de idade, é justo isso? Ela poderia fazer sozinha mas não faz, quer assistência 24 horas, eu não tenho mais energia.
Graça trabalho o dia inteiro naquele escritório, vou ao tribunal, passo o final de semana muitas vezes analisando processos e ainda tenho que cuidar desta criança nova que me surgiu, esta criança de 79 anos! A mãe da Solange está com 86, lembra da Solange? A mãe dela é independente, faceira, vaidosa, pega condução sozinha, joga baralho com as amigas, porque a nossa não é assim, porque ela se entregou tão cedo? Ela come de boca aberta, faz barulho nas refeições, derruba a a comida do prato, parece que faz de propósito, pra chamar a atenção. Eu não consigo ver um programa de tevê sossegada, ela senta ao lado e começa a perguntar: quem é este, o que ele está dizendo, sobre o que estão falando ... não fecha a matraca um segundo, às vezes me descontrolo dou uns gritos com ela, aí ela se emburra e é pior ainda, me arrependo, me sinto péssima, a coitada não tem culpa de ter envelhecido tão mal, tão solitária, tão desesperada, mas o desespero dela é contagiante, sou eu agora que estou desesperada, Graça, não era esta a vida que eu queria pra mim, eu tinha uma vida, não tenho mais, agora adormeço e acordo pensando em coisas cruéis, você sabe o quê: desejando que ela morra. Não acredito que escrevi isso.
Não quero que ela morra, claro que não, é nossa mãe, mas amor gasta, não gasta? Garanto que você ficou chocada de eu dizer que gostaria que ela morresse, mas não é você que está lidando com a situação diariamente há quatro anos, você apenas aparece de vez em quando pra fazer visitinhas e depois volta pra São Paulo e desliga da gente, você é moça ainda, apesar de achar que já deveria ter alguém, uma família, mas isso é problema seu, só que a mãe é problema nosso, não pode continuar sendo apenas meu, você tem que repartir comigo, ou meu amor por ela agora não é mais suficiente, eu tenho ódio às vezes, muito ódio, e fico com pena de mim, logo eu, você me conhece, logo eu que não tolero auto piedade. Graça, estou esgotada, precisando de férias, eu conseguiria tirar uns dias do escritório, a Solange e a Jó me cobririam, já conversei com elas, e o Flávio disse que pode tirar uns dias também, ele faz qualquer coisa para ir para um hotel tranquilo, de frente pro mar, sem ouvir a voz da mãe perguntando "o que foi, o que foi" quando ninguém falou nada. Ela não suporta o silêncio, ela finge que ouve coisas para ter o que responder, mas quando é pra prestar atenção, não presta, parece que velho age assim só pra nos atazanar.
Eu sei que você não tem cargo de chefia, não manda nos seus patrões, é apenas uma secretária, mas eu não posso mais com desculpas, eu preciso que você venha pra ficar com ela, e não me fale em final de ano, eu tô falando que preciso agora, a situação pede, eu te peço, Graça, não quero internar nossa mãe num desses lugares que a gente vê por aí, sei que há uns bem ajeitados e que os velhos se ocupam e se distraem, mas a mãe não pode nem ouvir falar do assunto, uma vez eu tentei falar com ela sobre isso e ela chorou feito um bebê, foi de cortar o coração, eu não teria coragem, Graça, ou teria, sei lá, eu vou ter que tomar uma providência, mas antes disso venha, seu lugar agora é aqui, a mãe também é sua, não arranje mais desculpas.
Me diga quando eu devo buscá-la na rodoviária.
Beijo,
Dinorá

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