Eu estava na fila do cinema, e ela dois passos à frente. Ela virava para
trás, me olhava, e logo virava para frente de novo. Até que numa dessas viradas
ela disse "oi". Eu retribuí: "oi". Ela: "É isso aí, tu
não me conhece, mas eu te conheço: tem que cumprimentar".
Eu sei, amiga.
Leitores me cumprimentam sem que eu os conheça, e tudo certo, já que há
uma foto minha ao lado da coluna do jornal. Só se torna um problema quando eu
realmente conheço a pessoa que me cumprimenta, já conversei com ela em algum
momento da vida, e não faço ideia de quem seja. Escrevi certa vez sobre isso:
se a pessoa é a recepcionista da minha médica, e sempre a vejo de coque e de
uniforme branco, ao passar por mim de vestido floreado e cabeleira solta num
shopping, não vou reconhecê-la. Se o sujeito com quem cruzo na academia, sempre
de calção e camiseta, entrar no restaurante de camisa polo e um blusão amarrado
em torno do pescoço, não vou reconhecê-lo. Se o porteiro do meu prédio for
filmado na arquibancada de um estádio vestindo a camiseta do seu time e segurando
um cartaz dizendo "Olha eu aqui, Galvão", periga o Galvão saber quem
é: eu, não. Tenho uma incapacidade crônica de identificar pessoas fora do
habitat em que costumo encontrá-las.
Sempre me justifiquei dizendo "sou péssima fisionomista", que é
um chavão, mas não é mentira, e que, aliado aos meus três graus de
astigmatismo, me garantia o perdão de algumas boas almas. Até que outro dia
entrei numa loja de conveniências, um cara abriu os braços ao me ver e disse
numa alegria comovente: "Marthinha!". Achei meio íntimo para um
leitor. Sorri amarelo e dei um "oi" igual ao que ofereci à moça da
fila do cinema. Ele insistiu: "Martha, sou eu!". Socorro, eu quem?
Então ele disse seu nome. Pasme: era um ex-namorado. A meu favor, deponho que foi
um namorado da época da faculdade (não me obrigue a fazer contas), mas, ora,
ainda que tenha sido na era paleolítica, conviveu comigo. Ao menos o seu olhar
deveria ser o mesmo. Me senti um inseto.
Pois bem, depois de anos soterrada em culpa, descubro que a medicina está
do meu lado. Acabo de saber que "sou péssima fisionomista" possui
nome científico: prosopagnosia. Uma doença que debilita a área do cérebro que
distingue traços e expressões faciais. Estou lendo o excelente Barba ensopada
de sangue, de Daniel Galera, cujo personagem vive o mesmo desconforto. Alguns
médicos dizem que há apenas 100 casos diagnosticados no mundo - provavelmente
eu e outros 99 acusados injustamente de ter o nariz em pé. Mas há quem diga
também que o problema é mais comum do que se pensa e que atinge uma a cada 50
pessoas, ou seja, é praticamente uma epidemia.
Comum ou incomum, me concedam o benefício da dúvida: talvez eu seja uma
pobre vítima da prosopagnosia e por isso não saio por aí dando dois beijinhos e
perguntando pela família de quem, a priori, nunca vi antes. Se não for
prosopagnosia, acredite: é astigmatismo evoluindo para uma catarata, somada a
uma palermice que me dificulta distinguir semblantes. Nariz em pé, juro que não
é.
Martha Medeiros - 13 de janeiro de 2013
Do livro “Liberdade Crônica”, pág.178 a 180
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