quinta-feira, 10 de abril de 2025

Música x Comida

Costumo visitar escolas e outras entidades para trocar ideias com estudantes. Mas já recebi outros tipos de convite: certa vez, foi para um encontro à tarde com algumas senhoras que realizariam um chá beneficente. Topei. As cinco horas em ponto me apresentaram ao grupo e me passaram o microfone. Ao mesmo tempo, três garçons começaram a colocar os bules e os biscoitos na mesa. Estava dada a largada para um dos maiores embates que já enfrentei.

Eram todas senhoras educadas e distintas. Cinco minutos antes, todas se declararam fãs e queriam muito escutar sobre a minha experiência como cronista. Pois bem. Foi aparecer o primeiro amanteigado sobre a mesa e a minha permanência no recinto foi tão percebida quanto um cisco no assoalho. Eu falava sobre poesia e elas se atiravam sobre a geleia de framboesa. Eu contava sobre os benefícios de se trabalhar em casa e as xícaras debatiam-se contra os pires. Enquanto eu narrava a minha aflição por, às vezes, ficar sem assunto, todas demonstravam uma aflição ainda maior por ficar sem adoçante. Na saída, ainda perguntei para a organizadora se ela achava que o grupo havia gostado. Ela me respondeu que claro, estava tudo crocante, uma delícia.

Até hoje me apiedo de pessoas que palestram em reuniões-almoço e de músicos que tocam em restaurantes.

Comida não tem concorrente. Ou se come ou se presta atenção. Semana passada estive numa festa onde centenas de pessoas tão educadas e distintas quanto aquelas senhoras reuniram-se para uma confraternização. E o melhor de tudo: foi anunciado o show da banda Jazz 6, liderada por Luis Fernando Verissimo. Um luxo. Só que, ao primeiro acorde do sax, liberaram o bufê. Adeus, jazz, adeus educação. Era Cole Porter versus filé ao molho madeira, Gershwin versus musse de salmão, Chet Baker versus arroz à grega. A orquestra de talheres e cálices roubou o espetáculo.

Música até combina com bebida, mas com refeição, o ideal é som eletrônico em volume civilizado ou nada. Comovo-me profundamente quando vejo alguém tocar seu violãozinho e cantar qualquer coisa inaudível enquanto o pessoal avança sobre estrogonofes e fricassés: é o auge do desespero profissional. Nem Frank Sinatra conseguiria o silêncio e a reverência de uma plateia a quem, além de ser servida A Voz, fosse servido também camarão ao curry. Ou se tem música ao vivo ou se tem comida ao vivo. Como dueto, é uma desafinação só.

Martha Medeiros - Dezembro de 2000.

Do livro "Liberdade Crônica", pág. 72 e 73

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