Costumo visitar escolas e outras entidades para trocar ideias com
estudantes. Mas já recebi outros tipos de convite: certa vez, foi para um
encontro à tarde com algumas senhoras que realizariam um chá beneficente.
Topei. As cinco horas em ponto me apresentaram ao grupo e me passaram o
microfone. Ao mesmo tempo, três garçons começaram a colocar os bules e os
biscoitos na mesa. Estava dada a largada para um dos maiores embates que já
enfrentei.
Eram todas senhoras educadas e distintas. Cinco minutos antes, todas se
declararam fãs e queriam muito escutar sobre a minha experiência como cronista.
Pois bem. Foi aparecer o primeiro amanteigado sobre a mesa e a minha
permanência no recinto foi tão percebida quanto um cisco no assoalho. Eu falava
sobre poesia e elas se atiravam sobre a geleia de framboesa. Eu contava sobre
os benefícios de se trabalhar em casa e as xícaras debatiam-se contra os pires.
Enquanto eu narrava a minha aflição por, às vezes, ficar sem assunto, todas
demonstravam uma aflição ainda maior por ficar sem adoçante. Na saída, ainda
perguntei para a organizadora se ela achava que o grupo havia gostado. Ela me
respondeu que claro, estava tudo crocante, uma delícia.
Até hoje me apiedo de pessoas que palestram em reuniões-almoço e de
músicos que tocam em restaurantes.
Comida não tem concorrente. Ou se come ou se presta atenção. Semana
passada estive numa festa onde centenas de pessoas tão educadas e distintas
quanto aquelas senhoras reuniram-se para uma confraternização. E o melhor de
tudo: foi anunciado o show da banda Jazz 6, liderada por Luis Fernando
Verissimo. Um luxo. Só que, ao primeiro acorde do sax, liberaram o bufê. Adeus,
jazz, adeus educação. Era Cole Porter versus filé ao molho madeira, Gershwin
versus musse de salmão, Chet Baker versus arroz à grega. A orquestra de
talheres e cálices roubou o espetáculo.
Música até combina com bebida, mas com refeição, o ideal é som eletrônico
em volume civilizado ou nada. Comovo-me profundamente quando vejo alguém tocar
seu violãozinho e cantar qualquer coisa inaudível enquanto o pessoal avança
sobre estrogonofes e fricassés: é o auge do desespero profissional. Nem Frank
Sinatra conseguiria o silêncio e a reverência de uma plateia a quem, além de
ser servida A Voz, fosse servido também camarão ao curry. Ou se tem música ao
vivo ou se tem comida ao vivo. Como dueto, é uma desafinação só.
Martha Medeiros - Dezembro de 2000.
Do livro "Liberdade Crônica", pág. 72 e 73