Gosto dos livros de ficção do psiquiatra Irvin Yalom (Quando Nietzsche
chorou, A cura de Schopenhauer) e por isso acabei comprando também seu "Os
desafios da terapia", em que ele discute alguns relacionamentos-padrão entre
terapeuta e paciente, dando exemplos reais. Eu devo ter sido psicanalista em outra encarnação, tanto o assunto me fascina.
Ainda no início do livro, ele conta a história de uma paciente que tinha
um relacionamento difícil com o pai. Quase nunca conversavam, mas surgiu a
oportunidade de viajarem juntos de carro e ela imaginou que seria um bom
momento para se aproximarem. Durante o trajeto, o pai, que estava na direção,
comentou sobre a sujeira e a degradação de um córrego que acompanhava a
estrada. A garota olhou para o córrego a seu lado e viu águas límpidas, um
cenário de Walt Disney. E teve a certeza de que ela e o pai realmente não
tinham a mesma visão da vida. Seguiram a viagem sem trocar mais palavra.
Muitos anos depois essa mulher fez a mesma viagem, pela mesma estrada,
dessa vez com uma amiga. Estando agora ao volante, ela surpreendeu-se: do lado
esquerdo, o córrego era realmente feio e poluído, como seu pai havia descrito,
ao contrário do belo córrego que ficava do lado direito da pista. E uma
tristeza profunda se abateu sobre ela por não ter levado em consideração o
comentário de seu pai, que a essa altura já havia falecido.
Parece uma parábola, mas acontece todo dia: a gente só tem olhos para o
que mostra a nossa janela, nunca a janela do outro. O que a gente vê é o que
vale, não importa que alguém bem perto esteja vendo algo diferente.
A mesma estrada, para uns, é infinita, e para outros, curta. Para uns, o
pedágio sai caro; para outros, não pesa no bolso. Boa parte dos brasileiros
acredita que o país está melhorando, enquanto a outra perdeu totalmente a
esperança. Alguns celebram a tecnologia como um fator evolutivo da sociedade,
outros lamentam que as relações humanas estejam tão frias. Uns enxergam nossa
cultura estagnada, outros aplaudem a crescente diversidade. Cada um gruda o
nariz na sua janela, na sua própria paisagem.
Eu costumo dar uma espiada no ângulo de visão do vizinho. Me deixa menos
enclausurada nos meus próprios pontos de vista, mas, em contrapartida, me tira
a certeza de tudo. Dependendo de onde se esteja posicionado, a razão pode estar
do nosso lado, mas a perderemos assim que trocarmos de lugar. Só possuindo uma
visão de 360 graus para nos declararmos sábios. E a sabedoria recomenda que
falemos menos, que batamos menos o martelo e que sejamos menos enfáticos, pois
todos estão certos e todos estão errados em algum aspecto da análise. É o
triunfo da dúvida.
Martha Medeiros – 15 de julho de 2007
Do livro “Liberdade Crônica”, pág.104 e 105