quinta-feira, 15 de setembro de 2022

"Cãomício" no calçadão

Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica, entre as Ruas Souza Lima e Sá Ferreira, dezenas de cães participaram sábado à tarde de um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana. Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde Pastores Alemães até miniaturas Pintcher. Junto ao meio fio, no local da concentração, um carro choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes, garantia a ordem. O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho cotó.

_ Nossos donos são irresponsáveis! - gritou ele.

_ Abaixo os donos irresponsáveis! - respondeu a multidão raivosa (embora toda ela vacinada).

_ Todo o poder aos cachorros! - prosseguiu veemente o Poodle branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre o Posto 6 e o Posto 4, como o líder inconteste do Dog-Power.

Em seguida, pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente.

_ Meus modos, if...if... (estava chorando, o coitado) ... Meus modos refletem o do meu dono... Não quero mais, if... if... Não quero mais passar vergonha sujando a calçada!

_ Nós também não! - responderam em uníssono os manifestantes caninos. Lá do meio do povo, alguém latiu com voz de Pointer:

_ Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer suas “coisas” é em casa!

_ Bravo! Apoiado! - concordou a cãonalhada.

_ Pipi-dog! Queremos pipi-dog! - puseram-se a ladrar umas cadelinhas Basset, cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. - Somos moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde possamos fazer a nossa toalete sem que os intrusos invadam a nossa privacidade!

_ Muito bem! Falou! Podem crer! – entoaram em coro os cinco Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e que fazem pipi - vejam só a heresia! -  na piscina do Copacabana Palace, que fica logo ali ao lado.

Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.

_ Senhoras e senhores - disse ele - sejamos objetivos. Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:

_ “Quero meu pipi-dog no apartamento.”

_ Apoiado! - gritou a assembleia.

_ Segundo ponto... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam uivar, mas docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião pública contra nossa causa...

Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador fora aceita. Ele então prosseguiu:

_ Segundo ponto: - “Queremos fazer nosso cooper canino apenas no calçadão central da Avenida Atlântica...”

Rabinhos balançaram para lá e para cá: aprovado.

_ Terceiro ponto: - “É preferível que não nos levem à praia, onde involuntariamente causamos uma porção de doenças!”

Rabinhos alegres: de acordo.

_ Desta forma - finalizou o Boxer - poderemos afirmar que somos felizardos e que temos donos educados!

_ Nosso dono vai ser superlegal! - exclamou a assembleia, esquecendo a recomendação de só balançar o rabo.

Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocô e pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.

 Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata, magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendo sob o pêlo ralo, o rabo entre as pernas.

_ Irmãos! - bradou ele, ou melhor, soltou essa palavra num gemido. – Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos, direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talco contra pulgas... Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de raça, cor ou credo!

_ Uh! Fora! -  gritaram os cães de luxo, que pertencem todos, naturalmente, à Direita, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano mais amplo da justiça social. _ Fora Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!

A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o Vira-Lata do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a cachorrada ululante com bombas de gás lacrimogêneo.

Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o lugar adequado a essa espécie de agitador. Ele agora está sendo processado e é capaz de passar o resto da vida num canil-presídio. Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.

José Carlos Oliveira

2 comentários:

  1. olá! coloquei seu blog na minha lista (https://sintrabloguecintia.blogspot.com/)

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Olá. Ficarei muito feliz com seu comentário. Só peço que coloque seu nome para que eu possa responder, caso necessário. Obrigada!