"O
senhor aqui é idoso", gritava a senhora para o guarda, no meio da
confusão na porta do Detran da avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo
o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho
para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua
carteira.
Olhei
em volta e procurei com os olhos o velhinho, mas nada. De repente, percebi que
o "idoso" que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não
era outro senão eu.
Até
hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e
traumáticos ritos de passagem para maturidade: dos 40, quando em crise se entra
pela primeira vez nos "enta"; dos 50, quando, deprimido, se sente que
jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos
100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira
idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra
passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a
ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.
Na
hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade,
tive vontade mesmo foi de lhe dizer: "idoso é o senhor seu pai". O
que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela
tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se
nem pediu para ver minha identidade? E o guarda paspalhão, por que não criou um
caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além
de idoso eu era, um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta
adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando revoltada:
"esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!"
Mas que nada, nem um pio.
O
silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo
privilegiado e vítima - do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60
anos. "Isso é uma sacanagem comigo", me disse, "eu não
mereço." Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem
universitária reagira assim: "Mas ninguém lhe dá isso." Respondi que,
em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De
qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran,
nem isso, nenhuma alma caridosa para me "dar" um pouco menos. Subi e
a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um
cartaz avisando: Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas." Hesitei
um pouco e ela, já impaciente, perguntou: "o senhor não tem mais de 65
anos? Não é idoso?
_ Não,
sou gestante - tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum
sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém.
Saí resmungando: "não tenho mais, tenho só 65 anos."
O
ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de
tempo: briga por causa de um mês, de um dia. "Você nasceu no dia 14, eu
sou do dia 15", já ouvi essa discussão.
Enquanto
espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste
transe. Aí, se não me falha a memória - e essa é a segunda coisa que mais
falha nessa idade - me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio
estariam sentados ali comigo. Por associação de ideias, ou de idades, vou
recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um
respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não
entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Jânio de
Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em um
ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou
com outro - de ano, meses ou dias -, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem
por esperar: é questão de tempo.
Ah,
sim, onde é que eu estava mesmo? "No Detran", diz uma voz. Ah, sim.
"E o atendimento?" Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e
limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira.
Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.
Zuenir
Ventura
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