Minha
tia pra vale, irmã do meu pai, eu chamo de Maria Eugênia porque ela me proibiu
de chamar de tia Maria Eugênia, disse que envelhecia, sei lá.
Imagino
que a senhora não esteja interessada em nada disso. É que não sei como tocar no
assunto, e falar pessoalmente não vai dar, não depois de ter visto a senhora
naquele estado, no enterro.
Tia
Lúcia, eu quis abraçar a senhora e não consegui, na verdade não consegui nem
chegar perto da capela, nem do tio Nestor, nem do Álvaro, de ninguém. Saí de lá
achando que nem deveria ter ido.
Eu
não imagino a sua dor, sei que é imensa, impossível imaginar. Mas posso
adivinhar suas perguntas, as dúvidas, as desconfianças. Era eu que tava
dirigindo, eu e ele no banco da frente, eu e o Lucas. É natural que a senhora e
o tio Nestor achem que eu tenha alguma explicação para o que aconteceu, que eu
possa dizer alguma coisa que alivie o desespero de vocês, mas eu não tenho nada
para dizer, foi tudo muito rápido e muito sem sentido.
Se
eu ao menos pudesse voltar no tempo. Coisa idiota de se dizer... Todos nós,
hoje, gostaríamos de estar na sexta-feira, gostaríamos de ter ido dormir cedo
naquele dia. Eu preferia nem ter nascido, sério.
Poderia
ter sido qualquer um, o Fábio, o Roger, O Correa, mas fui eu que dei carona pro
Lucas, ele me pediu, eu estava saindo da festa meio pê da vida com uma menina.,
nem vou contar o motivo, não importa, e o Lucas me perguntou se eu iria para os
lados dele, eu nem ia, mas disse entra aí. A senhora não vai acreditar, mas eu
não tinha bebido muito, dei uns goles numa cerveja quem nem era minha, quente,
tudo estava quente naquela noite, fico me perguntando por que eu saí, por que
não fiquei vendo um filme, por que tinha que ser comigo. O Lucas não tinha
bebido muito também. Estava de bobeira, aquele jeito dele, de estar nos lugares
sem saber por quê. Meio como todo mundo. A gente veio conversando umas
besteiras. Nos fundos da casa, dessa casa onde tava rolando a festa, havia uma
goiabeira. Nem sabia que isso ainda existia, a gente mudou de século agora, e uma
goiabeira, sei lá.
A
gente falava disso, ele havia acabado de comer uma goiaba pela primeira vez na
vida, muito engraçado o Lucas, mas eu estava tão confuso por causa da menina,
nem entendi muito aquele papo de goiaba, até que achei que o Lucas havia fumado
um, mas não, tia, ele estava de cara, todo mundo confirmou. Não era tarde, nem
duas ainda.
Eu
pensando na garota, ele falando aquelas bobagens sobre comer goiaba, o som
estava ligado, a gente ria sem motivo, eu sem motivo algum. Mas não estava
bêbado nem com sono, foi casualidade mesmo, um bicho, um cachorro, cruzou na
frente do farol, eu me assustei, travei, o carro derrapou, e tinha aquela
árvore ali, bem ali, do lado dele, bem do lado do carro, bem perto, eu não tive
culpa, ninguém teve, a rua estava vazia, tocava uma música, a gente viu o
bicho, eu tentei desviar, o carro não voltou tão rápido, ficou na árvore, uma
batida que nem era muita coisa, mas dizem que ele estava sem cinto, eu não vi,
nem reparei.
Tia
Lúcia, minha mãe não para de chorar, ela está chorando pela senhora, por mim,
pelo Lucas. Eu ainda não chorei porque nem sei direito o que aconteceu, eu
fiquei tão tonto, fui tirado do carro por uns camaradas e disse que não havia
sido nada, que exagero, não foi nada! E aquela gente juntando, eu com um
cortezinho assim, porcaria, nem precisava ambulância, essa gente delira. Juro,
nem viu o Lucas, achei que o cara tinha saído caminhando, eu naquela hora
pensava no carro, achei que tinha sido o único prejuízo, só depois eu soube, só
depois, e aí não entendi mais nada.
Eu
ainda não tinha conseguido assimilar até que vi a senhora no cemitério, e juro,
a senhora me olhou muito rapidamente, nem sei se durou um segundo, meio
segundo, um décimo de segundo, esses frames de Fórmula 1, foi rápido mesmo, mas
aquele centésimo de olhar me sepultou junto com o Lucas, e eu me senti morto,
eu não podia estar ali vivo, não pra senhora.
Desde
que eu comecei esta carta eu quero dizer que não tive culpa, mas a senhora vai
acreditar? Um dia, vai? Porque eu fico imaginando se eu tivesse um filho, nem
sei como é, e nem sei se vou ter um dia, mas se eu tivesse e acontecesse algo
assim eu acho que iria pirar. Escolheria alguém pra odiar o resto da vida. A
mãe disse que a senhora vai superar, mas vocês duas nem se conhecem, como é que
ela pode saber? Ela disse também que ódio é pra gente sem religião. Eu não sei
dessas coisas.
O
Lucas era meu chapa, a gente se dava legal, todo mundo gostava do cara. Vai
fazer falta pra turma, mas não sou tão criança, sei que pra senhora e pro
tio Nestor e pro Álvaro a coisa é mais sombria. O Álvaro. Eles são tão
parecidos. O Lucas e o Álvaro. A senhora tem o Álvaro. Eu não vou me aproximar
desse moleque, prometo.
Tia
Lúcia, não sei se um dia a gente vai voltar a conversar, eu até pensei em ir ao
apartamento de vocês mas acho que nunca mais. Eu não tive culpa, tia. Podia ser
qualquer outro na direção. Podia um detonado, um maluco ter entregue o Lucas
inteirinho em casa, mas foi comigo, que sou um cara que nunca se meteu em
encrenca. A vida prepara umas ciladas. Eu preferia nem ter saído de casa aquele
dia, e preferia que ele não tivesse pedido carona, e que aquele cachorro não
tivesse cruzado a frente do carro, e que eu não estivesse tão distraído, nem
nada disso tivesse acontecido. Queria acordar deste pesadelo, queria que hoje
fosse um dia como os outros. Tia, foi mal. Me perdoe.
André
***
P.S. Não sei se ainda está em cartaz esta peça de teatro com o ator Emílio Orciollo Netto onde ele narra esta carta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá. Ficarei muito feliz com seu comentário. Só peço que coloque seu nome para que eu possa responder, caso necessário. Obrigada!