Recebi um livro chamado A arte de ser gentil, com o dispensável subtítulo
A bondade como chave para o sucesso, que, a meu ver, descredibiliza um pouco o
autor, o sueco Stefan Einhorn, já que ser gentil deveria ser uma atitude para
facilitar as relações humanas, e não uma meta para o sucesso. Que sucesso, o
quê. Agora tudo que a gente faz tem que visar o sucesso?
O texto da contracapa diz que uma pessoa gentil terá mais oportunidades
de se tornar feliz, rica, bem-sucedida e realizada, e que o livro fornecerá
soluções imediatas e de longo prazo para os interessados em se tornarem seres
humanos melhores. Foi tudo que li até agora, a contracapa, e não vou adiante.
Primeiro, porque tenho uma pilha de outros livros me aguardando, e em segundo
lugar, porque já sou gentil. Nem sabia que sendo gentil eu poderia ficar rica,
feliz, bem-sucedida e essa coisa toda. Sou gentil simplesmente porque acho mais
fácil do que ser grosseira. Despende menos energia. E também porque não vejo
graça em magoar as pessoas. Até aí, estou no padrão. O que ninguém nos ensina é
que gentileza demais pode, por incrível que pareça, também ser um defeito, e
dos graves.
Óbvio que não se deve ser rude com amigos, parentes, colegas de trabalho,
vizinhos, comerciários, mas ser exageradamente gentil com todo mundo pode
colocar a nossa vida em risco. Por exemplo: o que você faz se, ao chamar o
elevador de um prédio estranho, à noite, a porta se abrir e lá dentro estiver
um sósia do Curinga, com uma cicatriz perturbadora na face e vestindo um
sobretudo enorme que poderia muito bem esconder duas pistolas, três granadas e
um rifle? Você certamente teria uma vontade súbita de descer pela escada e
sumiria de vista. Pois eu entraria no elevador toda faceira, daria boa noite e
faria comentários sobre o clima, pois deus que me livre de ele achar que eu sou
preconceituosa e que sua aparência me fez pensar que ele pudesse ser um esquartejador
de mulheres. Por que ele não pode ser um pai de família como outro qualquer?
Se eu pego um táxi e o motorista demonstra não ter o menor senso de
direção, arranha marchas, não usa o pisca-pisca e tira um fino dos outros
carros, eu é que não vou mandá-lo de volta para a autoescola. Se ele correr a
200km/h, tampouco solto os cachorros, vá saber o dia horroroso que ele está
descontando no acelerador, coitado. Neste caso eu simplesmente "me
lembro" de que o endereço onde pretendo ir fica na próxima esquina, e não
três bairros adiante, e saio pedindo desculpas pelo meu equívoco.
Se um garçom se aproximar perigosamente de mim com uma panela cheia de
óleo fervente, eu não dou um pio, imagina se vou pedir para ele se afastar. Ele
vai me considerar uma elitista estúpida – não basta ter pedido um fondue caríssimo,
ainda vou ser grossa? Nada disso, uma queimadura no braço não mata ninguém. E
se eu estou caminhando por uma rua escura e, na direção contrária, vem um
adolescente com um gorro enterrado até o nariz e as duas mãos enfiadas numa
jaqueta, eu começo a rezar, mas não troco de calçada, imagina o trauma que
posso causar no menino: vai ver é até um amigo da minha filha.
Se você tem mais de nove anos de idade, já sabe reconhecer uma ironia e entendeu meu recado: seja gentil, mas não a ponto de perder o tino. Se tiver que ferir suscetibilidades para salvar sua pele, paciência. Atravesse a rua. Desça pela escada. Dê no pé. Sucesso é chegar em casa com vida.
Martha Medeiros
21 de agosto de 2008
Do livro "Feliz por Nada", pág. 15 a 17