Esta é uma das histórias do livro "Mulheres de Aço e de Flores" do Pe.Fábio de Melo. Quando criei o blog logo me lembrei e pensei vou postar aquela história, uma das que mais me comoveu. É a história de uma mulher que se apaixona ainda jovem, por um eletricista que vai fazer um reparo na fiação da cozinha da sua casa, ela nunca viveu na prática este amor, viveu um amor platônico. O eletricista por sua vez casou, teve filhos e talvez nunca percebeu que tinha alguém que o amasse, a ponto de abdicar de outros amores por ele.
Quando li esta história me coloquei a pensar como pode uma pessoa ficar tanto tempo vivendo desta maneira, ou melhor sobrevivendo, porque isto é sobreviver “continuar a existir depois de outras pessoas ou coisas”, lamento! Se eu conhecesse esta mulher e é claro se ela pedisse minha opinião (ou talvez mesmo que não pedisse) diria à ela que não deveria desperdiçar seus dias com um amor impossível, ou talvez a aconselharia a se declarar à ele, afinal o que ela teria à perder? Não considero o fato de você se declarar como ser atirada, ou oferecida, você somente está tomando partido da sua vida, considero um ato de coragem tal atitude, afinal você está sujeita a levar um fora, e daí? Um fora dói sei disso, mas por algum tempo; e sofrer uma vida inteira, não é pior? Mesmo que ele não ficasse com ela, com certeza a partir deste suposto "não" ela seguiria sua vida e deixaria o coração aberto, propenso a novos amores. Mas enfim, acredito que a personagem espera na frase que diz “O que é para ser, será” ou “Destino”(em outra oportunidade falarei sobre este assunto) tive esta impressão com base no último parágrafo do livro. Será que hoje, com toda essa revolução feminina, ainda existem mulheres sobrevivendo por aí? Que acreditam em o que é para ser será e destino?
Abaixo trechos do livro para que se deliciem e tirem suas próprias conclusões:
O Zé Raimundo foi o único homem que me despertou os instintos mais vergonhosos. E mesmo hoje, distante do tempo em que o vi pela primeira vez, mesmo preservada numa castidade que já dura mais de meio século, ainda o desejo com os mesmos calores da juventude.
Foi desde a primeira vez que o vi. Quando ele entrou pela porta da minha casa eu descobri que a vida valia a pena.Ele não veio porque quis. Papai o contratou para fazer uns reparos na fiação da cozinha. Era uma manhã iluminada de Setembro, o dia era 13, o ano eu quis esquecer.
Usava calças marrons e camisa que não pus atenção. Só não esqueço do pequeno corte na altura do queixo, coisas de quem se distrai nos reparos finais do barbear. Sua voz era grave e as palavras poucas. Depois de hora e meia de serviço ele se foi e levou com ele a minha luz.
Nunca mais o tive por perto. Sempre o enxergava à distância. Vez ou outra eu o via passar com Diolinda, a namorada a quem amava fielmente. Vê-los de mãos dadas na praça do coreto era o mesmo que ser esfaqueada em público. Graças a Deus nunca presenciei um carinho mais ousado entre os dois, e isso eu sei que não suportaria sem sofrer um ataque de nervos. Guardei meu coração minha vida inteira...
... No dia do casamento do Zé Raimundo ardi em febre. Trancada no meu quarto, ouvia meu pai perguntar à minha mãe: _A Maria das Dores não vai à cerimônia com a gente?. Minha mãe prontamente respondeu: _ Ela não tem razão pra ir, nem conhece o rapaz!
Pronto, ali estava a razão exata da minha dor. O homem da minha vida não sabia quem eu era. Não faria diferença a minha presença...
.. Já se passaram 43 anos. O casamento do Zé Raimundo lhe rendeu seis filhos e já são oito netos... Outro dia encontrei o Zé Raimundo na padaria do Olegário. Há muito não o via. Eu estava entrando, e ele saindo. Educadamente me desejou bom-dia. Minha boca secou e eu não pude responder. Depois daquela manhã de Setembro foi a única vez que ouvi novamente o tom grave de sua voz. Nos poucos encontros que tivemos ao longo da vida, nunca o som. Sempre o silêncio que é próprio de quem não se conhece. Quase precisei de uma cadeira para sentar. Olegário percebeu a minha palidez e perguntou se estava me sentindo bem. A vontade era de gritar que eu estava com sintomas de paixão recolhida, mas faltou coragem, faltou boca pra dizer.
... Tenho uma caixa de pó de arroz que tem a idade das minhas esperanças. Comprei-a para usar no dia em que o Zé Raimundo me convidasse para um passeio na praça do coreto com ele.
Ainda não pude abri-la, mas continua guardada. Nunca se sabe! As esperanças duram o mesmo tanto que o amor.
... Quase nada mudou nesta casa. É bom que seja assim. A boquilha da cozinha ganhou o apelido de sacramento. Passo horas e horas olhando pra ela. Nunca deu um enguiço essa danada! O serviço foi muito bem realizado. Mas como nem tudo na vida é eterno, espero ansiosa pelo dia em que ela apresente um defeito, a necessidade de um reparo. Só então terei a coragem de chamar um eletricista para revisar essa fiação antiga. Quem sabe assim ele retorne com suas calças marrons e me devolva a luz roubada.